Para evitar "mala suerte" (já alguém questionou se só os melancólicos dos Portugueses é que criaram uma única palavra para expressar "azar"?), cheguei 1 dia antes, da minha partida à Europa, a esta cidade fantástica e atraente pela personalidade que pulsa em cada uma das artérias!
Fui assim conhecer o bairro mais característico que todavia ainda não tinha visto aquando a minha chegada em Janeiro. De facto para os porteños, desde de sempre, tudo é vivido com muita cor, paixão, vida... e La Boca assim se transformou numa praça e duas ruelas exageradamente TURÍSTICAS!! Foto alí ao ex-libris; foto acolá com dançainos de tango; artistas de rua mostrando suas (excelentes) obras de pintura e fotografia; pregões de empregados de cafés e restaurantes com uma perícia fantástica em relatar encadeadamente e num só fôlego a mesma frase em inglês, espanhol, alemão, francês... perante a nossa continuada ignorância aos seus menús... enfim!! Até mesmo as cores muito garridas daquele bairro, certamente patrocinadas e monotorizadas por um qualquer gabinete de turismo, são a marca turística daquilo que outrora era fruto da pobreza acentuada que durante décadas e turistas ainda não alterou: antigamente, e sem nenhum controlo arquitectónico, as pessoas de La Boca pediam encarecidamente os restos de tinta que sobravam dos estaleiros navais, para pintarem os retalhos que fosse possível pintar naquelas paredes forradas de zinco ondulado das suas casas...
Contudo, os desbatidos mas não menos interessantes pormenores continuam a existir ao longo do mesmo bairro nas zonas muito mais despovoados de turistas (e também, dizem, mais arriscados para criminalidade), como nos autocarros brilhantes que percorrem as ruas, o quartel dos bombeiros, as cores dos feverosos apoiantes dos clubes de futebol bem conhecidos... Esta foi a Buenos Aires que vi neste meu último dia, onde leis muito próprias regem os que vivem na Républica de La Boca: o monitor, de um grupo de inserção de meninos delinquentes desta república, não me soube bem responder quais são as razões que levam alguns meninos a julgar e sancionar outros atirando os seus ténis para um fio suspenso sobre o campo de futebol, ficando ali a penalidade exposta e inacessível, diria, para sempre!
E assim acontece... chegou a hora de embarcar no vôo de regresso à minha vida que rapidamente ficou esquecida semanas atrás!! Mas ressalvo que o entusiasmo visível numa das ruas mais agitadas de Buenos Aires, não é fruto de contentamento pela minha saída de terras de Sul d'América... digamos que são falsos entusiasmos da vitória da selecção da Argentina para uma publicidade televisiva de telemóveis!! A senhora idosa não achou muita piada à coisa, e, quando o staff da produção por fim liberou o cruzamento da longa e larga avenida para as várias pessoas retidas, caminhou rezingona e indiferente por entre esvoaçantes confetes fictícios de uma vitória aspirada pela maioria dos argentinos...
Quero agradecer profundamente todos aqueles que acompanharam e, principalmente, comentaram este blogue!! Fiquei muitíssimo agradecido por ter recebido a vossa reacção e acompanhamento... e, de facto, também graças a vocês, este blogue ficou para mim um diário quase completo de todos os eventos e visões mais relevantes que tive em cada uma das minhas 20 etapas... algo que, curiosamente, não tencionava nem julgava que seria capaz de o fazer, tal como se encontra descrito no topo desta página!
E, a esta hora há vários balanços materiais que fiz e que ainda terei que fazer... No entanto, perante o cadeado que desapareceu, uma T-Shirt rasgada, os bons pares de dollars que deitei para o lixo por não ser permitido entrar com vinho argentino nos aeroportos da Europa (mesmo comprado em freeshops de aeroportos da América do Sul), os quilos que emagreci, a roupa que ainda cheira a môfo (por não me ter apercebido que não se deve arrumar na mochila a roupa ainda molhada, devido à alta humidade do tempo quentíssimo do Pantanal), os óculos de sol que perdi, o sono que ficou por dormir, a destruição quase total do meu desgastado saco tira-colo, o meu leitor de MP3 estragado, o meu relógio de pulso desintegrado pela humidade, as escolioses que ganhei, e a carteira que me roubaram num terminal de autocarros... poderei afirmar, com certeza, que estas minhas férias foram as melhores que vivi, pois o balanço moral é descaradamente superior a qualquer balanço material...
É incrível a grande entrega com que rapidamente vivemos estas semanas de férias, as fortes vivências que sentimos, as inúmeras memórias inolvidaveis, as pessoas que vamos conhecendo, o impacto das paisagens que nos marcaram, o quotidiano tão característico de outras gentes e países que conhecemos... que tudo o resto que existia em Portugal parece que ficou constantemente intacto e congelado para mim!! Mas, também sei que nesta nova 2feira, vou entrar num ápice na engrenagem que tinha da minha vida, e que um role enorme de coisas se passaram na minha ausêncoa, dentro do meu círculo português, que infelizmente não tive oportunidade de compartir convosco.
O que mudou? Não tenho a resposta, por enquanto... caso um dia consiga reconhecer-me e observar-me fora "do dentro de mim", saberei eventualmente discernir a resposta no futuro, quando perante determinadas situações irei comparativamente agir de diferente maneira ou enfrentar com uma outra postura...
Por enquanto, apenas conheci outras realidades e imagens, que me fazem terminar este blogue com um poema que, casualmente, me veio ter aos meus olhos enquanto esfolheava uma revista no Chile:
"Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!"
(Fernando Pessoa)